O MUNDO ESCURO DE J. R. GUZZO
Por Fernando Carvalho autor de “Açúcar o perigo doce”
Em seu artigo na revista “Veja”
de 24/04/2013, J. R. Guzzo afirma que no mundo kafkiano em que vivemos,
qualquer pessoa pode ser considerada culpada de alguma coisa “mesmo que não saiba disso”. Segundo o
colunista da “Veja” isso começou depois do desmoronamento da ideia geral que
dividia o mundo em direita e esquerda.
O campo do “bem”, que se
confundia com a esquerda, se fragmentou em movimentos que defendem ou condenam
qualquer tipo de “causa” (da
preservação das borboletas do Afeganistão ao desmonte de uma usina hidrelétrica
na Amazônia).
E os “donos ou os militantes dessas causas”, ainda segundo Guzzo, é que definem as noções de certo ou errado,
bem ou mal, justo ou injusto e obrigam
todos a adotar uma postura necessariamente “correta” ou “incorreta”
em relação às suas causas.
Os tradicionais valores morais
como integridade, decência , gratidão, generosidade, cortesia, perderam
importância. Por mais honrada que seja, uma pessoa poderá ser incriminada se
não concordar com as bandeiras em voga, ser indiferente a elas, ou não saber
que existem.
Para J. R. Guzzo tais movimentos
possuem características de seitas de fanáticos. “Todas essas cruzadas se declaram proprietárias exclusivas do bem”.
Os dirigentes e militantes dessas “causas”
se julgam “moralmente superiores” e
exigem que todos abram mão de seu direito de raciocinar e simplesmente
concordem com eles. Para JRG está-se engendrando pouco a pouco “uma nova forma de totalitarismo”. Para
ilustrar Guzzo lembra que Gisele Bundchen propõe uma “lei internacional”
obrigando todas as mães de crianças pequenas a amamentar seus filhos. Para JRG
isso é a manifestação de um “desejo de
mandar no comportamento dos outros” e cita o psicanalista Contardo
Calligaris segundo o qual Gisele quer apenas “afirmar e consolidar seu poder sobre nós”. Esse parágrafo sem
querer respingou em mim que também defendo que seja proibida por lei a adição
de açúcar aos alimentos com o objetivo de acabar com as epidemias de cárie,
diabetes, obesidade, etc. “Ditador!” resmungarão J. R. Guzzo e Calligaris.
Ditador não, ao contrário, eu quero acabar com a “ditadura do açúcar”, ou
quando você entra num supermercado e compra um biscoito de “água e sal” e
descobre que o bicho contém açúcar, você não está sendo vítima de uma ditadura
que empurra açúcar goela abaixo da população?
Um caso ilustrativo dessa realidade moderna
que muito incomodou JRG, foi o fato de uma agência de propaganda ter feito um
anúncio para a Vokswagen onde aparecia um gato preto como símbolo de azar. Até
que grupos que defendem a causa dos gatos, “de
qualquer cor”, pressionaram a empresa para que o comercial fosse retirado
do ar. “Ganharam: a Volksvagen ficou com
medo do movimento pró-gato e cancelou o anúncio”, lamenta JRG para quem a “pressão bruta” dos defensores dos gatos é da mesma natureza de uma ditadura
que censura a imprensa, “o resultado é o
mesmo: aquilo que deveria ter sido publicado não o foi”. Por falar nos
defensores dos gatos, o pessoal já implicou com o clássico da literatura
infantil que reza: “Atirei o pau no
gato-tô, mas o gato-tô não morreu reu-reu”. Talvez esteja havendo exageros
do pro-gato típicos da infância de todo movimento social. Mas que o menino da
musiquinha é um sádico é. Queria ter matado o gato com apenas uma paulada.
Gostaria de defender aqui uma opinião diferente da de J. R. Guzzo, e
favorável aos defensores dos gatos pretos, das baleias e das borboletas do
Afeganistão. Quando o mundo era dividido em direita e esquerda, ou seja entre capitalismo
e socialismo, o mal era o capitalismo (exploração do homem pelo homem) e o bem
o socialismo, pelo menos teoricamente, (uma sociedade igualitária sem ricos nem
pobres). Ocorre que a defesa do socialismo no contexto do capitalismo aparecia
como a defesa de uma “ideologia exótica”, a defesa de uma “sociedade alternativa”.
O socialismo era “outra coisa” que tinha até marca e logotipo (a cor vermelha e
a foice e o martelo). Uma organização (o partido) e os militantes. Com a
dissolução da “utopia” socialista/comunista, as vítimas do capitalismo perderam
sua “causa única” e dissolveram-se nas “mil causas” que tanto incomodam J. R.
Guzzo.
Vamos ver agora o que isso tem de
bom: Que aconteceria se as baleias ficassem a mercê dos grandes navios
pesqueiros japoneses? Se os filhotes de focas e chinchilas ficassem a mercê de
da indústria de moda? Se as terras dos índios ficassem a mercê de
“agricultores” e “pecuaristas”? Os ursos pretos asiáticos à mercê dos
caçadores? A mata atlântica, a Amazônia e o pantanal matogtossense a mercê dos
usineiros de açúcar e álcool? Os papagaios e araras azuis a mercê dos
contrabandistas de aves silvestres? As ervas medicinais da Amazônia a mercê do
contrabando à serviço da indústria farmacêutica estrangeira? Se a indústria de
armas ficassem a mercê daqueles que lucram com elas? As mulheres a mercê dos
estupradores? As crianças a mercê dos pedófilos? Os gays a mercê dos homófobos?
Pequenos agricultores sem-terra a mercê dos grandes proprietários rurais?
Segundo J.R. Guzzo essas causas
“se multiplicam sem parar, não têm nenhuma conexão entre si”. Ledo engano, as
forças do bem possuem uma motivação básica, são costuradas pela linha do Direito. A demarcação de terras indígenas;
o direito de voto para as mulheres e menores de 16 anos; o direito das
minorias; a acessibilidade para os portadores de necessidades especiais; a
demarcação de áreas de proteção ambiental; a preocupação com a ecologia e a
sustentabilidade; o direito dos animais, a proibição seletiva da caça e da
pesca, etc., são um único e mesmo movimento que luta pelo direito de todos. Os
judeus por exemplo, muito antes da atual explosão de “causas e movimentos”, nos
anos 50 do século XX, por meio do advogado Fernando Levisky, deu início a uma
“causa”: expurgar dos dicionários brasileiros os vocábulos com acepções
pejorativas e ofensivas à dignidade das pessoas. O Dr. Levisky era judeu e não
se conformava com os significados da palavra “judeu” e termos derivados como o
de uso correntíssimo “judiar” constantes nos dicionários. O “movimento” não se
limitava a reabilitar o vocábulo judeu, pretendia escoimar de significados
pejorativos termos como negro, paulista, baiano, paraíba, galego, etc. A
campanha de Fernando Levisky teve repercussão e gerou o livro do jornalista
Queirós Junior, Vocábulos no banco dos
réus.
J. R. Guzzo se incomoda com a
constituição de movimentos e causas para defender as vítimas dessa sociedade
injusta, excludente e alienante na qual vivemos de seus carrascos.
O fato é que temos motivos para
comemorar, houve um grande avanço no movimento das “forças do bem”. Não mais se
luta por uma “ideologia exótica”, uma “sociedade alternativa”, uma “utopia”. A luta é para transformar o mundo em que
vivemos. Não mais se espera por uma revolução socialista redentora que
nunca chegava. Trata-se agora de mobilizar toda a população por seus direitos e
para ir corrigindo as distorções, algumas do tempo em que o país possuía
escravos, mesmo. A polícia hoje praticamente já é dependente do Disk Denúncia,
sem a ajuda da população das comunidades que estão sendo libertadas da
influência de traficantes de drogas a polícia não teria alcançado as vitórias
que alcançou.
Isso é apenas o começo da história. Duas
causas de importância fundamental é a que exige transparência das operações que
envolvem dinheiro público, o objetivo é acabar com a corrupção. E a que propõe
a democracia direta, a atual tecnologia da informação já permite isso, os
eleitores podem votar os grandes temas tocando o dedo no seu smartphone.
Técnicos legislativos se encarregam de redigir as leis. Deputados e senadores
vão virar peças de museu. O objetivo final é a proibição da fabricação de armas
atômicas, químicas e biológicas; a eliminação das diferenças nacionais, a
adoção da solidariedade como método nas relações internacionais de modo que o
resultado seja um mundo onde se possa viver em paz. Nada de “atirei o pau no
gato”.